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Daniele Cristina

Msda. Daniele Cristina Frediani
PPEdu/ UEL

História das disciplinas escolares
Nem sempre a terminologia disciplina foi apreendida como um conjunto de saberes organizados em torno de uma denominação ou subscrição, ou como concebe  Chervel (1990)  como “conteúdos de ensino”. Até o século XIX a terminologia disciplina correspondia ao verbo disciplinar e portanto significava geralmente a repressão de condutas, controle de atitudes e regulação. Segundo André Chervel (1990), as terminologias mais usuais que equivaliam ao que entendemos hoje por disciplina consistiam nas  “expressões ‘objetos’, ‘parte’, ‘ramos’, ou ainda ‘matérias de ensino’ ”  (p.177).
Conforme Chervel (1990) as “disciplinas” em seu sentido atual, assumiram essa terminologia no início do século XX, sobretudo após a I Guerra Mundial, quando passaram a ser entendidas como uma “simples rubrica que classificam as matérias de ensino”, entretanto ainda persistiram sobre esse termo seu ascendente atributo de “regrar”, pois como afirma André Chervel (1990):
uma disciplina é igualmente para nós, em qualquer campo que se encontre, um modo de disciplinar o espírito, quer dizer, lhe dar os métodos e regras para abordar os diferentes domínios do pensamento, do conhecimento e da arte (p.180).
Para Ivor Goodson (1997), as disciplinas escolares condizem aos interesses que estão vigentes em uma determinada época, principalmente pela classe dominante e estão imbricados a interesses internos e externos ao currículo, segundo ele, as disciplinas escolares são “construções sociais e políticas e os atores envolvidos empregam uma gama de recursos ideológicos e materiais para levarem a cabo as suas missões individuais e coletivas”  (p.26).
Os saberes que se encontram presentes nas disciplinas escolares são frutos de uma seleção e estruturação condicionadas a agentes e aos meios que encontram ao seu entorno e por isso Vinão Frago (2008) as concebe como “organismos vivos” que se transformam, se adaptam e se convergem conforme sua conjuntura, assim para seu estudo o autor sugere
 considerá-las como organismos vivos. As disciplinas não são, com efeito, entidades abstratas com uma essência universal e estática. Nascem e se desenvolvem, evoluem, se transformam, desaparecem, engolem umas às outras, se atraem e se repelem, se desgarram e se unem, competem entre si, se relacionam e intercambiam informações (ou as tomam emprestadas de outras) etc. Possuem uma denominação ou nome que as identifica frente às demais, ainda que em algumas ocasiões, como se tem advertido, denominações diferentes mostram conteúdos bastante similares e, vice-versa, denominações semelhantes oferecem conteúdos nem sempre idênticos. Tais denominações constituem, além disso, sua carta de apresentação social e acadêmica (p.204).
As disciplinas escolares estão associadas as finalidades do ensino escolar e portanto são esculpidas conforme suas épocas, sujeitos, cultura e sociedade e são segundo André Chervel (1990) construções do espaço escolar.
Nesse sentido as disciplinas escolares podem ser entendidas como organizações sociais e culturais, não sendo “entidades monolíticas, mas amálgamas mutáveis de subgrupos e tradições que, mediante controvérsias e compromisso, influenciam a direção de mudança”. (GOODSON, 1995, p. 120). Elas são pois palco de disputas de poder, tanto social quanto acadêmico em que se entrecruzam  “interesses e atores, ações e estratégias”.(VINAO, 2008, p.204).
Uma perspectiva elencada por Viñao Frago (2008), como sendo o elemento chave na configuração, organização  e ordenação de uma disciplina condiz-se ao ângulo do código disciplinar. Por se tratar de um código, este pressuposto versa sobre normas e regimentos a serem seguidos e partem da perspectiva de caráter  impositivo. Para Frago (2008), o código disciplinar
[...] trata-se de um código cujos componentes  se transmitem de uma geração a outra, dentro da comunidade de “proprietários” do espaço acadêmico reservado, graças aos [...] mecanismos de controle de controle da formação da seleção e do trabalho ou tarefa profissional. (VINAO, 2008, p. 206)
Ainda segundo Vinão Frago (2008), o código disciplinar parte essencialmente de três aportes  norteadores  sendo: “um corpo de conteúdos”, um fundamento ou “argumento sobre o valor formativo e a utilidade dos mesmos e a atualidades dos mesmos e umas práticas profissionais” (p.206).
Voltando-se para esse ótica elencada por Viñao Frago, o autor Raimundo Cuesta Fernandez, integrante do Projeto Nebraska, criado em 2001 por pesquisadores espanhóis onde se discutem e produzem estudos acerca das temáticas: História das disciplinas (e campos profissionais ) ,  genealogia da escola e  critica didática, e um das principais referências da atualidade nos estudos das disciplinas escolares e do currículo, também parte da perspectiva do código disciplinar como sendo uma dimensão onde se dispõe saberes estruturados, métodos, técnicas e finalidades. Para Cuesta Fernandes (1998) a ótica do código disciplinar consiste em
Una tradición social que se configura historicamente y que se compone de un conjunto de ideas, valores, suposiciones y rutinas, que legitiman la funcion educativa atribuída a la Historia y que regulam el orden de la práctica de su enseñanza. Alberga, pues, las especulaciones y retóricas discursivas sobre su valor educativo, los contenidos de su enseñanza y los arquetipos de práctica docente, que se suceden en el tiempo y que se consideran, dentro de la cultura dominante, valiosos y legitimos. En suma, el código disciplinar comprende lo que se dice acerca del valor educativo de la Historia, lo que se regula expresamente como conocimiento historico y lo que realmente se enseña en el marco escolar. Discursos, regulaciones, prácticas y contextos escolares impregnan la acción institucionalizada (los alumnos) que viven y reviven, en sua acción cotidiana, los usos de educación histórica de cada época. (p.8-9).
 Dominique Julia aponta que os principais tropeços ao se tratar das disciplinas escolares, consistem em estabelecer “genealogias enganosas tratando a todo custo de encontrar as origens de uma disciplina, tal qual segmento antecedente” (p.52), “pensar que uma disciplina não é ensinada porque não aparece nos textos de programação ou porque não existem cátedras oficialmente criadas sob esse nome” e “ imaginar um funcionamento idêntico no tempo das disciplinas escolares, quando estas se designam sob o mesmo rótulo” (JULIA apud VINAO, 2008, p.202).
Para evitar esses equívocos ao se estudar uma disciplina escolar, Viñao Frago (2008) lança a mão uma espécie de roteiro para se inquirir sobre uma disciplina escolar, conceituando alguns aspectos mínimos para os estudos que abarcam as disciplinas escolares. Em síntese esses estudos deveriam prever:
a) Seu lugar, presença, denominações e peso nos planos de estudos. b) Seus objetivos explícitos e implícitos e os discursos que a legitimam como disciplina escolar.
c) Seus conteúdos prescritos: planos de estudo, livros de texto, programas, programações.
d) Os professores das disciplinas: 1) Formação, titulações. 2) Seleção: requisitos, concursos e oposições (memórias, critérios, avaliações). 3) Carreira docente. 4) Associações: formação de comunidades disciplinares. 5) Publicações e outros méritos. 6) Presença social e institucional.
 e) Uma aproximação, até onde for possível, às práticas escolares e à realidade em classe através de memórias, informes, exames, diários e cadernos de aula, documentos particulares etc. (VINAO, 2008, p.199)

Referências
CHERVEL, A. História das disciplinas escolares: reflexões sobre um campo de pesquisa. Teoria & Educação, Porto Alegre, v. p.177-229, 1990.
CUESTA FERNANDES, Raimundo. Clio en las aulas. Madrid: Akal, 1998
FORQUIN, J.-C. Saberes escolares, imperativos didáticos e dinâmicas sociais. Teoria e Educação. Porto Alegre, n. 5, p. 28-49, 1992. 
GOODSON, I. F. Currículo: teoria e história. Rio de Janeiro: Vozes, 1995.  
GOODSON, I. F. . A construção social do currículo. Lisboa: Educa, 1997.
HÉBRARD, Jean. 1990. A Escolarização dos Saberes lementares na Época Moderna. In: Teoria & Educação. no 2. Porto Alegre: Pannonica.
JULIA, D. A cultura escolar como objeto histórico. Trad. de Gizele de Souza. In: Revista Brasileira de História da Educação.n.1, p. 09-43, Jan./jun., 2001
MAGALHÃES, J. P. Tecendo nexos: história das instituições educativas. Bragança Paulista: Ed. Universitária São Francisco, 2004. Capítulo 3. p. 111-178
NÓVOA, A. Para o estudo sócio-histórico da gênese e desenvolvimento da profissão docente. Revista: Teoria & Educação, n. 4, 1991. p. 109-139.
NÓVOA, Antônio. Vidas de professores. Porto: Porto Editora, 1997.
SAVIANI, Dermeval. Formação de professores: aspectos históricos e teóricos do problema no contexto brasileiro. Revista Brasileira de Educação. 2009. V.14, n. 40. p. 143-155
VEIGA, Cynthia Greive. A civilização das crianças pela escola (BRASIL, SÉCULO XX): Questões teóricas e conceituais. Anais: XII Simpósio Internacional Processo Civilizador, Recife: 2009.
VIDAL, Diana G. & FARIA Filho, Luciano Mendes. Os tempos e os espaços escolares no processo de institucionalização da escola primária no Brasil. In. VIDAL, Diana G. & FARIA Fº, L. M. As lentes da história. Campinas: Autores Associados, 2005. p. 41-72
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FRAGO, A Vinao. Do espaço escolar e da escola como lugar: propostas e questões. In. FRAGO, V.; ESCOLANO, A. Currículo, espaço e subjetividade: a arquitetura como programa. (p. 59-141)
VIÑAO FRAGO, A. A história das disciplinas escolares. Trad. Marina Fernandes Braga. In: Revista Brasileira de história da educação. n.18, p.173-205, Set./dez., 2008.


7 comentários:

  1. Leonildo de Oliveira Gonçalves3 de abril de 2017 às 16:47

    As disciplinas escolares, segundo André Cheevel (1990)[..]são as construções​ do espaço escolar[...], Semelhante a citação de Ivor Goodson (1997) "construções sociais e políticas[...]", e Vinão Frago (2008) compara a disciplina a um "organismo vivo". Partindo desses pressupostos, tendo base o século XX e plena início do XXI, se fossemos mudar esse conceito, qual nome dariammos a essa CONSTRUÇÃO????

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  2. Saudações Daniele Cristina Frediane. Primeiramente parabéns pelo texto e pela relevante e atual reflexão. Daniele, nas últimas décadas em decorrência do processo de “reconceptualização” do currículo, se constituiu no Brasil um campo de pesquisa ligado à História da Educação e ao Ensino de História que vem possibilitando entender como certos conhecimentos se tornam saberes escolarizados. Chamado história das disciplinas escolares, das matérias escolares ou dos conteúdos curriculares, o campo vem despertado a atenção de pesquisadores das mais diferentes áreas por possibilitar conhecer a história das disciplinas escolares, desnaturalizando a ideia de que elas ao longo do tempo sempre ensinaram os mesmos conteúdos e cumpriram as mesmas finalidades. Por outro lado tem também se configurado no importante espaço para contraponto à produção historiográfica das grandes ideias pedagógicas e dos projetos educacionais do Estado. Assim, gostaria de saber como você vê o desenvolvimento de pesquisas voltadas à história das disciplinas escolares, em especial a História, uma vez que esta tem sua historicidade, muitas vezes representada somente pelos grandes ideais pedagógicos do Estado.

    Mário Sérgio Pereira de Olivindo.





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    1. Nos últimos quarenta anos houve um avanço significativo no desenvolvimento de estudos acerca das disciplinas escolares enquanto objeto de pesquisa e Campo de pesquisa. Os fatores que auxiliaram nesse desenvolvimento foram originários das pesquisas desenvolvidas pela Sociologia dos Currículos, pelo estudo da Cultura Escolar e pelo estudo dos códigos disciplinares.

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  3. As disciplinas escolares estão associadas as finalidades do ensino escolar e portanto são esculpidas conforme suas épocas,sujeitos,cultura e sociedade e são segundo André Chervel(1990) construções do espaço escolar.
    Nesse sentido as disciplinas podem ser entendidas como organizações sociais e culturais?

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    1. Sim pois são palco de disputas sócio históricas e culturais. Ela são fruto do que a classe dominante considerou como cultura legitimada

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  4. Se a escola é focada na educação integral, qual sua verdadeira missão ?

    Maria Michele da Silva Sousa

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