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Igor Fernandes; Luciana das Neves

Mundo representado e a política da imagem
Luciana das Neves Rosa Costa
Professora da SME/RJ
Igor Fernandes de Alencar
Mestrando do PPGH/RJ

No início do atual século, no cenário brasileiro, vivenciamos a provocativa ao debate acerca das identidades nacionais, ou seja, sobre os componentes identitários que permitem nos pensar enquanto um mesmo povo. A tensão foi incitada pela implementação de ações afirmativas, na categoria política de cotas raciais/sociais em algumas universidades públicas brasileiras. Esta contenda trouxe à baila a discussão que ocorreram dentre suas dinâmicas temporais em outros contextos brasileiros, mas, desta vez não sendo uma questão restrita as elites nacionais. 
Observamos de fato o continuar das experiências de fabricação da Identidade Nacional, talvez tão impactantes quanto aquelas iniciadas na se­gunda década do século XIX (marcada pela negação da pluralidade étnica, pela valorização de nossa suposta euro-descendência e pelos referenciais teóricos do Determinismo Racial) e na década de 1930 (com a defesa de uma suposta cultural nacional homogeneizadora e embebida na ideia da miscigenação e da “democracia racial”). O atual momento foi, na realidade, iniciado há mais tempo, cerca de quarenta anos, e refunda algumas de nos­sas velhas crenças redefinindo a identidade nacional a partir da combinação ou co-existência de outras identidades. Esse “novo” diálogo de imagens e reflexos identitários, que é muito mais revelador para os teóricos/educado­res, e muito mais significativo para aqueles que se vêem forçados a assumir ou a negar o pertencimento a alguma dessas “outras identidades”, parece ser muito mais funcional e crível do que o suposto manto de uma identidade comum que recobriria a todos (OLIVA; FELICI, 2014, p. 193-194).
Várias identidades, que permaneciam em nós invisibilizadas pela máxima “ser brasileiro”, foram fortemente acessadas. Somos brasileiros, bem como, mulheres e homens; negros e brancos; nordestinos e nortistas; portadores de crenças e estilos distintos. Aqui, estenderemos pelo viés teórico de sujeitos com experiências diaspóricas ou pós-coloniais, não somente pelas buscas explicativas como suas vivências de trânsitos e enfretamentos.
Dentre os especialistas vinculados aos “Estudos Culturais” (Cultural Studies) ou aos Estudos Pós-Coloniais, estaremos a caminhar na trajetória reflexiva do sociólogo jamaicano Stuart Hall, criador do Center for Contemporany Cultural Studies (CCCS) na Universidade de Birmingham, do qual foi diretor de 1968 a 1979. Coadunaremos a estas experiências reflexivas um diálogo com a legislação escolar vigente que estabelece as diretrizes e bases da educação brasileira – LDB; os Parâmetros Curriculares Nacionais – PCNs; as Leis 10.639/03 e 11.645/08, que tratam da obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena; e as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Edu­cação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro­-Brasileira e Africana.
Não por acaso, o que vem ocorrendo desde fins da década de 1990, com as noções de cultura e diversidade cultural, assim como de identidades e relações étnico-raciais, integrando as normatizações estabelecidas pelo Ministério da Educação (MEC) com o objetivo de regular o exercício do ensino fundamental e médio, especialmente na área de história. Ações que aliam-se aos espaços de representatividade conquistados no cenário político e social dos movimentos negros e anti-racistas no processo político brasileiro, e no campo educacional em especial (ABREU; MATTOS, 2008, p. 06).
Em uma sociedade democrática, dentre as várias instituições sociais, a escola é apontada sempre como uma instituição-chave. Isso, por sua capacidade de reparar cidadãos e cidadãs para o convívio social (SILVÉRIO, 2006, p. 7). E, dentre as discussões e reflexões vivenciadas no contexto de ensino-aprendizagem, sobre a relevância dos conteúdos vinculados à história africana, afro-brasileira e a educação étnico-racial existe um eixo obrigatório ou elemento de articulação: a identidade.
O conceito de identidade poderia ser empregado para significar uma espécie de “ponto de encontro”. E, “[...] entre os discursos e as práticas que tentam nos ‘interpelar’, nos falar ou nos convocar para que assumamos nossos lugares como os sujeitos sociais de discursos particulares...” (HALL, 2000, p. 110-112). Assim, quando levantamos o questionamento basilar em nossa identificação – quem somos? – também se faz necessário contrastar também como os outros nos enxergam e nos definem; outros com os quais temos que interagir, dialogar e negociar continuamente nossas identidades, em circunstâncias por vezes desiguais e conflitivas.
Identidade, aqui, está intimamente ligada a conhecimento e mais amplamente a representação. As imagens que cinge a nossa volta corriqueiramente, são também objetos de disputas no mundo representado – a política da imagem, a disputa de sentido. Stuart Hall analisou criticamente a representação do negro nas imagens do capitalismo e do imperialismo britânico.
Os teóricos e estudiosos das identidades, em certa tendência, evadem das definições essencialistas acerca das identidade, além dos efeitos sociais negativos de tal perspectiva, a impossibilidade de se pensar a identidade como estática, imutável, rígida, absoluta e autorreferencial. Este dispositivo busca caracterizar a identidade mais como um processo de construção, determinado histórica, social e culturalmente – enfatizando, dessa maneira, o caráter dinâmico, provisório e relacional das identidades.
Desde a “virada cultural” nas ciências humanas e sociais, contudo o sentido é visto como algo a ser produzido – construído – em vez de simplesmente “encontrado”. Consequentemente, circunscrita ao que veio a ser chamado de “abordagem social construtivista” ou “construtivismo social”, a representação é concebida como parte constitutiva das coisas; logo, a cultura é definida como um processo original e igualmente constitutivo, tão fundamental quanto a base econômica ou material para a configuração de sujeitos sociais e acontecimentos históricos – e não uma mera reflexão sobre a realidade depois do acontecimento (HALL, 2016, p. 25-26).
Este sentido de cultura, surge com este peso, sobretudo advindo da chamada “virada cultural” nas ciência humanas e sociais, especialmente nos estudos culturais e na sociologia da cultura. Com isso, em nossa contemporaneidade, a cultura acaba por desrespeitar a produção e ao intercâmbio de sentidos – o “compartilhamento de significados” – entre os membros de um grupo ou sociedade.
Há de se notar a via analítica destes estudos e uma contundente crítica ao suposto caráter sólido, rígido e fixo das identidades que, ao contrário, deveriam ser tomadas como processos permanentes de identificação. É por este caminho que Hall nega o essencialismo que tem como pressuposto um núcleo fixo, estável, idêntico e imutável, para defender, em seu lugar, um conceito de identidade estratégica e posicional, sujeita a um constante processo de mudança e transformação, seja ela individual ou coletiva (HALL, 2000, p. 108).

Referências Bibliográficas
OLIVA, Anderson R.; FELICE, Renisia C. G. Identidades em construção: pluralidade cultural, o ensino de história africana e a educação étnico-racial, diálogos necessários. In.: MORAES, Cristina de Cássia. HCABA, Goiânia, 2014
MOORE, Carlos. Do marco histórico das políticas públicas de ações afirmativas – perspectivas e considerações. In.: Ações afirmativas e combate ao racismo nas Américas/ Organizador, Sales Augusto dos Santos. – Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005. 400 p. – (Coleção Educação para Todos)
ABREU, Martha; MATTOS, Hebe. Em torno das “Diretrizes curriculares nacionais para a educação das relações étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana”: uma conversa com historiadores. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 21, nº 41, janeiro-junho de 2008, p. 5-20.
SILVÉRIO, V. R. A diferença como realização da liberdade. In. ABRAMOWICZ, A.; BARBOSA, L. M. A.; SILVÉRIO, V. S. (Org.). Educação como prática da diferença. Campinas, SP: Armazém do Ipê (Autores Associados), 2006.
HALL. Stuart. Quem precisa da identidade? In: SILVA, Tomaz Tadeu da. (Org.) Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000. p. 103-133.
HALL, Stuart. Cultura e representação / Stuart Hall; Organização e revisão técnica: Arthur Ituassu; Tradução: Daniel Miranda e William Oliveira. – Rio de Janeiro : Ed. PUC-Rio : Apicuri, 2016.


5 comentários:

  1. Olá Luciana e Igor,

    Nessa nova abordagem de identidades, a Escola vista ainda como um "aparelho ideológico do Estado", pode suplantar essa premissa e dialogar com os novos grupos culturais (entendendo nesse caso, as minorias que hoje digladiam no espaço político-cultural das capitais?

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  2. Olá, José. Bom principiar dialógico acometido por você.
    A escola e sua busca utópica de construir sujeitos “universais” ao gosto do freguês que a gere segue em crise. Porém, em uma sociedade democrática, dentre as várias instituições sociais, a escola é apontada sempre como uma instituição-chave. E, é logo envolto destes espaços é que se percebe a dinâmica do conflito como possibilidades para a (de)construção, no sentido Derridiano. Ou seja, seria o trabalho de dentro das unidades de sentido, de dentro dos textos encontrar o princípio que os forma. Uma recuperação da memória das coisas.
    A importante energia imanada das ações dos mais variados grupos historicamente marginalizados, não pode ser desperdiçada. Há divergências dentre os mais variados movimentos sociais, bem como entre os sujeitos de um determinado grupo. E, envolto de uma carência de orientação, estudantes e/ou ativistas não mais esperam em soluções prontas e acabadas, buscam sentidos ordenadores no mundo da vida. O que os conectam é uma espécie de “ponto de encontro”, uma sinergia, um elemento de articulação: a identidade.
    Identidade, aqui, está intimamente ligada a conhecimento e mais amplamente a representação. As imagens que cinge a nossa volta corriqueiramente, são também objetos de disputas no mundo representado – a política da imagem, a disputa de sentido. E, como algo a ser produzido – construído – em vez de simplesmente “encontrado”.
    Att,
    Igor Alencar

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  3. Olá! Parabéns pelo artigo! Concordo com vocês quando se referem a escola como instituição-chave, pois é nela que se reflete toda a sociedade em que está inserida. A valorização das diversas identidades dentro do ambiente escolar se faz necessário para uma sociedade mais tolerante e democrática em direitos. Porém, sabemos que as escolas públicas carecem de investimento, especialmente na formação dos profissionais. Como trabalhar "identidades" na escola quando não se tem a formação necessária?

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    1. Olá Ana Joana.
      Lidar em meio a um ambiente estruturalmente adverso é um dentre tantos empecilhos ao qual discentes e docentes enfrentam cotidianamente. Sobre a valorização das múltiplas identidades, a demanda inicial lançada ao professor é de valorizar os mais distintos pertencimentos. Pois, num ambiente sadio de aprendizagem, os próprios alunos podem lançar suas demandas representativas.
      Os debates sobre as identidades que ainda seguem em bom tom, nas mais distintas instancias e segmentos sociais, não se limitou a discursos acadêmico ou militante. Está em nosso cotidiano, e ainda em uma escritura suplementar, um elaborar continuo. Não sendo os únicos envolto do processo que confere a educação, professores também são convocados a assumirmos mea-culpa, isso, dentre a consciência histórica que logo implica, agir! Distanciando da imagem passiva do professor/a que espera um “receituário médico” a sanar os problemas. Não há receita pronta. É preciso projeção coletiva, afim de deslumbrar um caminho de possibilidades no ensaio/erro que já confere aprendizagem.
      O primeiro passo é partir através da semiótica e interpretar a sintomática do problema naquele lócus analisado. E, na contramão da grande indústria Farma, no ambiente educacional é preciso manipular soluções que atendam ao conjunto de sistemas que constitui um organismo, o corpo. Daí, as variações de públicos, desde os níveis de ensino à localização geográfica e condições socioeconômicas dos envolvidos. Bons e mais variados recursos estão disponíveis em bibliotecas escolares após os dispostos contidos na legislação educacional (ex.: da discussão étnico-racial, as Leis 10.639 e 11.645), e/ou, ao recurso de alguns cliques na internet. Há instituições dispõe de material, como:
      Publicações (Secadi) - http://portal.mec.gov.br
      Geledés - http://www.geledes.org.br/areas-de-atuacao/educacao/planos-de-aula/#gs.XvBxvVM

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    2. Olá Ana Joana, obrigada pela sua pergunta, é bom saber que mesmo em meio às confabulações políticas, que tem afetado diretamente as legislações que norteiam a educação, tem profissionais preocupados com o que realmente importa...
      Embora saibamos que um dos maiores problemas da educação seja a formação desses profissionais, vemos também que muitos desses, se sentem com o compromisso político em promover um ambiente saudável e de representatividade, visto que o mundo o qual nossos alunos experienciam, não foi formatado pensando neles, nem na realidade a qual eles compartilham. Isso se dá dos comerciais de TV, material didático e paradidático, e etc.
      Mas é claro que mesmo pensando em uma educação que discuta a diversidade, temos que ter o cuidado de não cairmos em contradição fazendo o uso do discurso “somos todos iguais na nossa diferença”, mas sim, pensarmos em uma educação “Intercultural Crítica”, onde pensamos uma proposta “pedagógica decolonial”. (WALSH, 2010).
      O fazer prático, não tem receita pronta, mas sim são “ensaios e erros”, visto que nem tudo vai dar certo com todas as turmas. Mas, quando construímos uma proposta de acordo com a realidade dos discentes, temos um grande retorno.
      Ao pensarmos em uma educação que o representa, que que faça parte do quotidiano dele, conseguimos potencializar suas ações e elevar sua auto-estima.
      E o melhor de tudo é que podemos fazer em todo e qualquer seguimento: da educação infantil à universidade.
      Voltando a sua pergunta (Como trabalhar "identidades" na escola quando não se tem a formação necessária? ) Igor já sugeriu algumas páginas que são excelentes, tenho algumas experiências pessoais também e que deram certo de acordo com minha realidade, na Educação Infantil, EJA e hoje na Sala de recursos. Qualquer coisa me chame no e-mail: lucianadasnevesrosa@gmail.com, será um prazer trocar com você.

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