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RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS E SISTEMA DE COTAS (COR/ETNIA) NO BRASIL ATUAL
Wilverson Rodrigo Silva de Melo
Prof. Dnt. UFOPA

Introdução
O Art. 2º, inciso IV, § 3º da Orientação Normativa nº 3 de 1º de Agosto de 2016 da Secretaria de Gestão de Pessoas e Relações do Trabalho no Serviço Público do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (MPOG), o qual delibera a eliminação de candidatos pardos/pretos quando constatado a declaração de informações falsas.
Isto suscita muitos questionamentos, no sentido de aferir o que nos faz reconhecer o “outro” como negro? Que traços e características podemos atribuir ao indivíduo de cor parda/preto, pertencente a etnia negra? Seriam os aspectos fenotípicos?

Adentrando a discussão...
No Brasil de hoje, as características fenotípicas (tipos de cabelos, nariz, cor da pele, lábios grossos, etc), ascendência familiar, pertencimento cultural e auto reconhecimento parecem já não serem suficientes para a auto afirmação de identidade negra, como também o reconhecimento disso entre os pares.
A Normativa do MPOG de Agosto de 2016, ao deliberar a etapa de Banca de aferição de cor/etnia, desconstrói todas as noções de auto afirmação de identidade, deixando o processo classificatório sob a tutela dos pares, os quais por meio de critérios subjetivos podem reconhecer e eleger quem é mais negro/pardo e/ou negro/preto do que o outro. O que demonstra um grande retrocesso e ataque aos direitos conquistados pelas pessoas negras no Brasil – quase que uma nova forma de segregação racial entre negros.
No tocante a isto, é que o Art. 2º da Lei 12.990/2014 (Lei de Cotas em Concursos Públicos) estabelece que “poderão concorrer às vagas reservadas a candidatos negros aqueles que se autodeclararem pretos ou pardos no ato da inscrição do Concurso Público (e aqui também se compreende como concursos públicos, os processos de seleção de estudantes no nível superior – grifo meu), conforme o quesito cor ou raça utilizado pelo IBGE”.
Com efeito, temos o seguinte silogismo: se a análise da possibilidade de os candidatos concorrerem às vagas reservadas aos negros se rege pelos quesitos cor e/ou raça, utilizados pelo IBGE e, se o IBGE utiliza apenas o sistema autodeclaratório, sequer poderia existir procedimento de verificação da condição cor/etnia do candidato.
Ademais, o Estatuto da Igualdade Racial (2010) para evitar exclusões detrimentosas, previu expressamente no Art. 1º, parágrafo único, inciso IV, que “[...] para efeito deste Estatuto, considera-se população negra: o conjunto de pessoas que se autodeclaram pretas e pardas, conforme o quesito cor ou raça usado pelo IBGE ou que adotam autodefinição análoga”.
O racismo e a ideia de raça, no sentido biológico, também foram considerados inaceitáveis [...] A intenção era enfatizar que os grupos humanos não eram marcados por características biológicas herdadas de seus ancestrais mas, sim, por processos históricos e culturais. Dessa forma, etnia é o outro termo ou conceito usado para se referir ao pertencimento ancestral e étnico/racial dos negros e outros grupos em nossa sociedade (GOMES, 2005, p. 50).
Partindo de tais pressupostos e à luz das Ciências Jurídica, Histórica e Antropológica, inferimos que os aspectos fenotípicos estão ligados diretamente a forma como o indivíduo se vê, se auto declara e se auto reconhece. Ademais, como se já não bastasse o processo de negação de identidade vivenciado e externalizado por muitos indivíduos, agora têm-se o processo de negação de identidade externado pelos “outros” com base em critérios subjetivos dos pares em Bancas de Aferição.
Segundo o Ministro Dias Toffoli do Supremo Tribunal Federal ao pronunciar-se sobre a exclusão de candidata afro-descendente da condição de cotista em concurso público, o mesmo afirma:
Contudo, o que se exige do candidato é a condição de afrodescendente e não a vivência anterior de situações que possam caracterizar racismo. Portanto, entendo que a decisão administrativa carece de fundamentação, pois não está baseada em qualquer critério objetivo [...] Considero que o fato de alguém 'se sentir' ou não discriminado em função de sua raça é critério de caráter muito subjetivo, que depende da experiência de toda uma vida e até de características próprias da personalidade de cada um, bem como do meio social em que vive. Por isso, não reconheço tal aspecto como elemento apto a comprovar a raça de qualquer pessoa (DIAS TOFFOLI, 2013).
A partir de tais premissas, defendemos que sem adequado respaldo em fundamentação lógica e razoável, as verificações fenotípicas unilaterais das Bancas Examinadoras de Aferição de Cor/Etnia em Concursos Públicos (e também em processos de seleção estudantil), ao invés de proporcionar a devida inclusão social, causarão discriminação e verdadeira subversão do sistema de cotas no Brasil, como também dos Direitos Fundamentais assistidos àqueles que são negros, se autodeclaram como tais e, tem pertencimento cultural e ascendência familiar negra.
Nesse sentido, afirmamos que o povo brasileiro é advindo de um grande e longo processo de miscigenação cultural e étnico, tendo a diversidade cultural e fenotípica, como aspecto visível. Logo, entendemos que a melhor forma de definir etnia/cor é por meio da autodeclaração e autoreconhecimento fenotípico e étnico, pois grande é a diversidade de etnias que formam a população brasileira e, nesse ínterim, não tem como diferenciar ou distinguir quem é mais negro (pardo e preto) do que o outro, uma vez que é por meio do processo de reelaboração cultural e reafirmação de identidade que:
[...] grupos sociais étnicos com tradições, cultura, língua e símbolos comuns constroem sua subjetividade permitindo uma autoidentificação, bem como serem identificados por outros grupos étnicos, independentemente de uma consanguinidade, conforme Weber (1982) e Siss (2003).
É inconcebível e retrógrado rotular e reconhecer os indivíduos como “pardos-pardos”, “pardos-preto”, “preto-preto”, soa como um retorno as políticas e teorias raciais do século XX que classificava os indivíduos com base no tamanho da caixa craniana, dimensão da mandíbula, tipos de cabelos, características antropométricas e etc.

Considerações Finais
Em certo sentido, tais políticas do MPOG atendendo a ala mais radical do Movimento Negro no Brasil, retroagem no processo de reconhecimento de cor e etnia, revisitando nomenclaturas antigas de “moreno claro”, “moreno escuro”, “cafuzo”, ao assemelhar-se as atuais de “pardos-pardos”, “pardos-preto”, “preto-preto”, causando instabilidade e discriminação jurídica e identitária no seio da população brasileira.
(...) a diferença entre pretos e pardos no que diz respeito à obtenção de vantagens sociais e outros importantes bens e benefícios (ou mesmo em termos de exclusão dos seus direitos legais e legítimos é tão insignificante estatisticamente que podemos agregá-los numa única categoria a de negros, uma vez que o racismo no Brasil não faz distinção significativa entre pretos e pardos, como se imagina no senso comum. (SANTOS, 2002, p. 13)
A guisa de conclusão, se as discussões entorno do “mito da democracia racial” proposto por Gilberto Freire no início do século XX tem tido ao longo dos anos grandes atenções por pesquisadores e militantes das questões étnico-raciais no Brasil, agora estamos vivenciando uma nova forma de “antidemocracial racial”, o que poderíamos alcunhar como “Neo antidemocracia racial”, gestada dentro do Movimento Negro no Brasil, estabelecendo discriminação e diferenciação fenotípica e identitária entre os indivíduos pertencentes a etnia negra.
Que pese isto, a política “Neo antidemocracia racial” por meio das Bancas de Aferição de cor/etnia nos Concursos públicos e processos seletivos de ingresso estudantil, propõe que os indivíduos provem que são negros mediante marcadores de “pretura”, mostrar que são mais pretos e negros que os demais candidatos, lançando por terra os avanços históricos de autoafirmação, autodeclaração e autoreconhecimento mediante o pertencimento cultural, o que mostra um grande retrocesso cultural e educacional, trazendo perturbação mental e segregação étnico-racial dentro da etnia negra, em se tratando do sistema de cotas para acesso ao nível superior, seja como estudante ou trabalhador.
Referências
GOMES, Nilma Lino. In: Educação anti-racista: caminhos abertos pela Lei Federal 10.639/03.Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade – Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005. (Coleção Educação para Todos)
MINISTÉRIO DO PLANEJAMENTO, DESENVOLVIMENTO E GESTÃO (MPOG) - SECRETARIA DE GESTÃO DE PESSOAS E RELAÇÕES DO TRABALHO NO SERVIÇO PÚBLICO. ORIENTAÇÃO NORMATIVA Nº 3, DE 1º DE AGOSTO DE 2016 In: DOU de 02/08/2016 (nº 147, Seção 1, pág. 54). 2016.
PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA - Casa Civil - Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei nº 12.990, de 9 de junho de 2014 In: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2014/Lei/L12990.htm. 2014.
PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA - Casa Civil - Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010. In: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12288.htm. 2010.
SANTOS, Sales Augusto dos. Ação Afirmativa ou a Utopia Possível: O Perfil dos Professores e dos Pós-Graduandos e a Opinião destes sobre Ações Afirmativas para os Negros Ingressarem nos Cursos de Graduação da UnB. Relatório Final de Pesquisa. Brasília: ANPEd/ 2° Concurso Negro e Educação, mimeo, 2002.
SISS, Ahyas. Afro-brasileiros, Cotas e Ação Afirmativa: razões históricas. Rio de Janeiro: Quartet, 2003.
STF - ARE: 729611 RS, Relator: Min. DIAS TOFFOLI. Julgamento de Exclusão de candidata afrodescendente em Banca de Aferição em Concurso Público. (Data de Julgamento: 02/09/2013, DIVULG 06/09/2013 PUBLIC 09/09/2013).
WEBER, Max. Ensaios de sociologia. 5ª ed. Rio de Janeiro: LTC Ed., 1982.

12 comentários:

  1. Boa noite. Muito instigante o trabalho apresentado.
    Mas, fiquei com as seguintes dúvidas:
    1) Os "critérios subjetivos" de avaliação são realizados nos ato do processo classificatório?
    2) Qual seria a outra possibilidade de avaliação, uma vez que, existem casos de indivíduos que aproveitam do sistema de cotas para ingressar de forma leviana nas universidades (por exemplo)?

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    1. Saudações Celimara!

      Obrigado pelas provocações que sempre são motivadoras a nos fazer refletir e discutir.

      Veja, conforme as normativas do MPOG, os critérios subjetivos ocorrem no processo classificatório. Caso o candidato seja reprovado pela banca, ele só continua no certame concorrendo pela ampla maioria de não cotistas.

      Quanto a outra possibilidade de avaliação.. isso com certeza é polêmico e encontra-se num terreno arenoso. Penso que além da questão de auto reconhecimento (defendido pela OIT, e que o Brasil como signatário adotou), uma saída para evitar as fraudes seria um reconhecimento de pertencimento pelo vínculo cultural do indivíduo, que dentro de uma perspectiva antropológica, o vínculo cultural e identitário está ligado ao sistema de relações, ou seja, é relacional entre o indivíduo e seus pares, seja em entidades ou num espaço geográfico mais restrito.

      Cordialmente, Wilverson Rodrigo.

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  2. Opa! ME desculpe Wilverson.
    Não finalizei o meu comentário.
    Parabéns, gostei muito do texto apresentado.
    CElimara Solange da Silva Orlando

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  3. Boa noite. Muito instigante o trabalho apresentado.
    Mas, fiquei com as seguintes dúvidas:
    1) Os "critérios subjetivos" de avaliação são realizados nos ato do processo classificatório?
    2) Qual seria a outra possibilidade de avaliação, uma vez que, existem casos de indivíduos que aproveitam do sistema de cotas para ingressar de forma leviana nas universidades (por exemplo)?

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  4. Boa noite prof. Wilverson, dentro de tudo que foi exposto, como podemos criar um mecanismo que barre indivíduos brancos que tentam fraudar concursos públicos e vagas em universidades, optando por vagas destinadas às cotas raciais? Obrigado. Tomé Soares da Costa Neto

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    1. Saudações Tomé Costa!

      Obrigado pelo contato e arguição!

      Veja, creio que contemplei a discussão de sua pergunta em meu retorno a Celimara Orlando...

      volto a frizar..

      Quanto a outra possibilidade de avaliação.. isso com certeza é polêmico e encontra-se num terreno arenoso. Penso que além da questão de auto reconhecimento (defendido pela OIT, e que o Brasil como signatário adotou), uma saída para evitar as fraudes seria um reconhecimento de pertencimento pelo vínculo cultural do indivíduo, que dentro de uma perspectiva antropológica, o vínculo cultural e identitário está ligado ao sistema de relações, ou seja, é relacional entre o indivíduo e seus pares, seja em entidades ou num espaço geográfico mais restrito.

      Cordialmente, Wilverson Rodrigo.

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  5. Bom dia!
    Esse tema suscita um bom debate. Considero o sistema de cotas uma grande conquista dentro da politica de reparação, contudo, pergunto a Wilverson:
    • Até onde seu trabalho analisa a situação de permanência do negro cotista no Ensino superior?
    • Como articular em rede o mapeamento desses cotistas?
    Aqui na Universidade do Estado da Bahia, uma das pioneiras na adoção da politica de cotas, temos dificuldades de reconhecer o aluno cotista dentro da universidade.

    Rosemária Joazeiro P. de Sousa- Caetité/Bahia

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    1. Saudações Prezada Rosemária Sousa!

      Com certeza concordo com você quando afirmas que o tema suscita um grande e polêmico debate!

      Bem veja, para este texto, só está contemplado a discussão pertinente ao acesso... Porém a pesquisa continua para observar a permanência e formação desse aluno na universidade.

      Quanto a questão de mapeamento de cotistas, aqui na Universidade Federal do Oeste do Pará isto tem se mostrado um trabalho não tanto árduo, já que temos um processo seletivo especial quilombola (PSEQ) e o processo seletivo especial indígena (PSEI)... e a Pró Reitoria de Gestão estudantil (PROGES) que gerencia estes processos com a Pró Reitoria de Ensino tem conseguido acompanhar o desenvolvimento dos alunos cotistas desde o acesso, permanência e formação.

      Cordialmente, Wilverson Rodrigo.

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  6. Bom dia!
    Texto altamente instigante. Um verdadeiro retrocesso. Aliás, estamos vivendo um período de grandes retrocessos em nossa recente história. O autorreconhecimento enquanto identidade negra, foi um processo longo, árduo, dolorido. O sistema de cotas, foi uma conquista grandiosa, tendo em vista os séculos de segregação, desigualdade, violência, para que agora seja reduzido a uma mera análise subjetiva. A pergunta que me vem a cabeça é, que critério será estabelecido para excluir um candidato que escolhe a opção de cotas?

    Aureanne Silva de Oliveira

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  7. Boa tarde!
    Pensando em como muitas pessoas se beneficiam de cotas por declararem-se afrodescendentes, sem ao menos entenderem como vive e sobrevive o negro dentro da nossa sociedade brasileira, fico pensando em como esses indivíduos não imaginam nem como foi dado todo esse processo de definição da lei. Assim, minha pergunta é, como devemos proceder na definição de "merecimento" por parte de qualquer candidato que se declara integrante desse processo de cotas?

    Taís de Andrade Freitas

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  8. Olá, boa tarde!

    Concordo com algumas colocações feitas pelo autor, entretanto, gostaria de fazer algumas considerações. Também entendo que auto-identificação é um importante "etapa" no processo de percepção das identidades individuais. Mas é importante lembrar-nos que as dinâmicas sociais que direcionam os sujeitos a esse fenômeno se dão em relação à outros sujeitos e grupos. Através da fricção entre os diferentes grupos, os próprios participantes, elegem aquelas características que os diferenciam ou que os igualam. Desta forma, se classificam em grupos de acordo com elas, atrelando seus significados em elementos culturais e sociais.
    No Brasil, um desses elementos delimitadores do "eu" e do "outro", correspondem às características corporais dos sujeitos. Não relação entre negros e não-negros, as características fenotípicas são os principais critérios para determinar quem será incluído ou excluído de determinado espaço (seja ele simbólico ou não), por exemplo. Apesar disso, quando falamos sobre os critérios para adesão às Políticas de Ações Afirmativas de cunho racial (não me refiro às diferenças biológicas e sim aquelas elegidas socialmente), apenas o quesito "auto-identificação" é suficiente para classificação do sujeito como negro ou não negro, pois não é isso que é levado em consideração nas interações sociais. Pensando nisso, gostaria de indagar, não seria mais interessante pra nós negros, problematizar o porquê de apenas a auto-identificação ser levada em consideração, haja vista que o processo de classificação racial no Brasil feito pelos sujeitos e seus pares não se dá dessa forma? Gostaria de pedir também, se possível, ao autor que nos escreva suas outras hipóteses eleitas importantes para afirmar que as bancas examinadoras são um "retrocesso".

    Obrigado!
    Marcos Antonio Silva dos Santos

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  9. Oi como a partir das idéias muito pertinentesimples trabalhar com a temática referência a umbanda?

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